“É moda ultimamente afirmar que a Terra não é um corpo excepcional dentre as esferas que perfazem a máquina celeste. Dada a enorme quantidade de bolas que giram por aí, deve haver pelo menos umas poucas muito semelhantes à Terra. Este é o argumento aparentemente razoável. Trata-se de uma nova forma de articular um problema antigo. Tem ou não nossa Terra uma posição central e única dentro do cosmos?
[…] Os astrônomos e os assim chamados ‘astrobiólogos’ estão empenhados em procura febril de uma segunda Terra. Suponhamos por um instante que a encontrem. Isto não seria o fim da briga [entre Ptolomeu e Copérnico]. Uma segunda Terra não seria, certamente, uma cópia fiel da nossa. Haveria diferenças consideráveis. E essas diferenças bastariam aos defensores de Ptolomeu para proclamar a unicidade de nossa terra.
Confesso, no entanto, que não creio na mínima possibilidade de uma tal descoberta. O contato com seres de outros ‘planetas’ é coisa da science fiction, e os marcianos que falam latim, e as plantas comedoras de gente de Betelgeuse… são coisas de Hollywood e de sanatórios para alienados.
[…] A procura por uma segunda Terra é produto do desespero e da sensação de isolamento. É a recusa de aceitar o fato brutal de que a vida se restringe não somente em tempo, mas também em espaço. Não queremos nos conformar com o caráter único da nossa Terra, e com o isolamento da vida que decorre desse caráter excepcional da Terra.
Consideremos a situação excepcional e única da nossa Terra no cosmos. Em primeiro lugar, é a Terra um corpo excepcionalmente moderado. Não arde em brasa incandescente. Não revolve no frio inimaginável do zero absoluto. Não consiste de matéria rigidamente compacta. Não flutua como gás rarefeito. Não gira violentamente em redor do seu eixo. Não é acompanhada por milhares de luas (pelo menos não o é ao escrevermos estas linhas). Não está isolada e perdida no espaço. Mas a quase totalidade dos corpos que conhecemos é radical num ou noutro sentido enumerado, exceção feita aos 2 ou 3 planetas em nossa imediata proximidade.
Mas em segundo lugar a Terra é excepcionalmente mutável. As suas nuvens se deslocam, as suas montanhas surgem e desaparecem, os seus continentes e seus mares viajam. A terra é um paradoxo: excepcionalmente moderada e excepcionalmente mutável. Ela representa, se comparada aos demais corpos celestes, um estágio de extrema instabilidade, um estágio fugaz e transitório entre dois extremos.
Como surgiu esse estágio precioso que deu origem à vida? As circunstâncias e as influências que possibilitaram esse estado de coisas são de tal complexidade, que imaginar que se repetiram ou repetirão não é sinal de imaginação, mas sinal de falta de conhecimento. Se uma única circunstância tivesse faltado, e se uma única influência tivesse falhado, a vida não teria surgido. Porque um único elo pode quebrar a cadeira precária dessa labilidade preciosa.
Por exemplo: a Terra tinha que ser planeta. Numa estrela são inimagináveis as condições terrestres. E planetas são raros. Mas como planeta, tinha que estar a uma distância exata de um astro de tamanho exato. Um pouco mais próxima deste astro, e seria um corpo em brasa como Vênus. Um pouco mais distante, e seria frígida como Marte. […] É preciso afirmar que a Terra é um corpo em tudo excepcional, e que a possibilidade de encontrar outro corpo assim é muito mais que improvável.”
VILÉM FLUSSER (1920-1991)
in: A História do Diabo (pgs. 42 a 44)
Editora Annablume
Publicado em: 17/01/12
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
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Comentou em 26/12/13